sexta-feira, 30 de outubro de 2015

CARNES VERMELHAS, PROCESSADAS E DIETAS SUSTENTÁVEIS

Carnes vermelhas, processadas e dietas sustentáveis
Carnes vermelhas, processadas e dietas sustentáveis
What-s-next-for-the-bacon-obseWhat-s-next-for-the-bacon-obseEm Outubro de 2015, 22 cientistas de 10 países diferentes reuniram-se em Lyon, França, na sede da Agência Internacional para a Pesquisa do Cancro (IARC) para reverem toda a evidência disponível sobre a relação entre carnes vermelhas e processadas e o risco de cancro. Para isso foram analisados mais de 800 estudos epidemiológicos realizados ao longo dos últimos 20 anos, dos quais se concluiu que:
  • Carnes-ProcessadasAs carnes processadas são cancerígenas para humanos (Grupo 1), com base na evidência disponível para o cancro colorretal;
  • As carnes processadas poderão aumentar o risco de cancro do estômago;
  • As carnes vermelhas são provavelmente cancerígenas para humanos (Grupo 2A), com forte evidência relativamente ao risco de cancro colorretal;
  • As carnes vermelhas poderão aumentar o risco de cancro do pâncreas e da próstata.
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IARC utiliza um sistema de classificação de substâncias ou outros agentes de acordo com a força da evidência científica disponível capaz de estabelecer uma relação causal com o cancro. Por outras palavras, se podemos dizer que um determinado alimento ou substância é capaz de causar cancro. Neste caso, as carnes processadasforam incluídas no Grupo 1, o mais alto nível de evidência disponível, juntamente com substâncias  como o tabaco, o álcool ou o amianto. Embora façam parte do mesmo grupo de risco, o nível desse risco é diferente para cada elemento: tanto o tabaco como as carnes processadas causam cancro, mas o tabaco representa um risco maior, chegando aumentar 15 a 30 vezes o risco de cancro do pulmão, do que as carnes processadas que poderão duplicar o risco de cancro colorretal.
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A principal conclusão da revisão realizada pela IARC baseia-se numa meta-análise de 2011 que incluiu 14 estudos prospetivos de coorte que conclui que por cada 50 gr de carnes processadas consumidas diariamente existe um aumento de 18% no risco de cancro colorretal e que por cada 100 gr de carnes vermelhas esse risco é de 17%(Chan et al., 2011). Na realidade, embora neste momento o impacto desta declaração da OMS com base na classificação da IARC seja grande, a recomendação de se reduzir o consumo de carnes vermelhas e evitar o consumo de carnes processadas já fazem parte das recomendações da WCRF/AICR há vários anos. Desde 2007 que essas recomendações estão disponíveis com base no relatório publicado a cada 10 anos “Food, Nutrition, Physical Activity, and the Prevention of Cancer: a Global Perspective“.
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Recomendações similares podemos encontrar no Código Europeu Contra o Cancro:
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Embora estes relatórios e recomendações estejam orientados para a prevenção do cancro, o consumo de carnes vermelhas e processadas poderá também estar relacionado com o risco de outras doenças:
  • Diabetes tipo 2: Uma meta-análise concluiu que por cada 100 gr/dia de carnes vermelhas houve um risco 19% superior de diabetes e por cada 50gr/dia de carnes processadas houve um risco 51% superior (Micha et al., 2012).
  • Doença coronária: a mesma meta-análise conclui que por cada 50 gr/dia de carnes processadas houve um risco de 42% de doença coronária (Micha et al., 2012).
  • Acidente vascular cerebral: uma meta-análise conclui que por cada porção diária de carnes processadas houve um risco 13% superior de AVC e por cada porção de carnes vermelhas esse risco foi 11% superior (Kaluza et al., 2012).
  • Mortalidade: uma meta-análise conclui que o consumo total de carnes vermelhas e processadas está associado a um risco 29% superior de mortalidade (23% para as carnes processadas e 10% para as carnes vermelhas) (Larsson and Orsini, 2014).
São vários os mecanismos que poderão explicar a relação entre as carnes vermelhas e processadas e o risco de cancro:
  • formation-of-HCA-with-heatAminas Heterocíclicas e Hidrocarbonetos Aromáticos Policíclicos: Quando as carnes dos músculos de animais é exposta a temperaturas altas, formam-se dois tipos de compostos altamente cancerígenos chamados aminas heterocíclicas (HCA) e hidrocarbonetos aromáticos policíclicos (PAH). Vários estudos em animais têm mostrado que as HCAs são carcinogénicas e induzem tumores em diferentes órgãos (Nagao, 1999Sugimura, 1997).
  • IGF-1: A proteína completa e os alimentos com um índice glicémico alto contribuem para o aumento dos níveis de IGF-1. Níveis elevados desta hormona de crescimento estão associados ao risco superior de vários tipos de cancro.
  • Ferro Heme: O ferro heme presente na carne vermelha está relacionado com a formação de compostos N-nitroso (Bastide et al., 2011).
  • Nitritos: conservante utilizado nas carnes processadas, produz nitrosaminas (Loh et al., 2011). Estas substâncias podem induzir cancro em mais de 40 espécies de animais, incluindo os primatas (Bogovski and Bogovski, 1981).
  • Carnitina e Colina: presentes em grandes quantidades produtos de origem animal, são metabolizados por bactérias nos intestinos, transformados em N-óxido de trimetilamina (TMAO), a qual poderá aumentar o risco de doença cardiovascular (Koeth et al., 2013) e contribuir para um aumento dos níveis inflamatórios.
  • Neu5Gc: o Neu5Gc é um ácido siálico que os seres humanos não conseguem sintetizar, uma vez que o respetivo gene está desativado e que se encontra em quantidades abundantes nas carnes vermelhas. Este açúcar poderá acumular-se nos tumores e promover inflamação sistémica (Samraj et al., 2015).
  • Metionina: Este aminoácido está presente em grande quantidades nos alimentos de origem animal. As células de cancro têm uma dependência absoluta deste aminoácido: na sua ausência morrem, ao contrário das células saudáveis que conseguem sobreviver sem ele.
  • Colesterol: Um metabólito do colesterol (27-hidroxicolesterol) comporta-se como o estrogénioestimulando o crescimento de cancros dependentes desta hormona, tal como o da mama.
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Em relação a outros tipos de cancro ainda não existem provas convincentes para podermos ter uma ideia final mas ainda assim existem indicadores sugestivos de que o consumo de carnes vermelhas e processadas possam estar associado a um risco superior de vários cancros:
  • Esófago
  • Pulmão
  • Pâncreas
  • Endométrio
  • Estômago
  • Próstata
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Em relação ao cancro da mama, até hoje os estudos realizados não mostraram um risco superior associado ao consumo de carnes vermelhas. No entanto, a maioria desses estudos limitou-se a avaliar a dieta durante a meia-idade e daí para a frente. Alguns estudos têm avaliado o impacto no risco de cancro da dieta em idades precoces, o que poderá ser determinante para o risco futuro.
teen-eating-meat-155758995Um novo estudo desenvolvido pela Harvard(Harvard’s Nurses’ Health Study II) procurou perceber a relação entre o consumo de carnes vermelhas em idades jovens e o risco de cancro da mama. Foram incluídas mais de 88000 mulheres na fase anterior à menopausa, seguidas ao longo de 20 anos. De acordo com os resultados, o consumo de carnes vermelhas está associado a um aumento de 22% no risco de cancro da mama. Cada porção diária adicional de carne vermelha está associado a umaumento de 13% no risco de cancro da mama.
Os autores do artigo referem que a exposição às carnes vermelhas e processadas entre a primeira menstruação e a primeira gravidez poderá ser mais importante no desenvolvimento do cancro da mama. Além disso verificaram que o risco de cancro da mama era menor em mulheres que substituíram as carnes vermelhas por leguminosas durante a juventude, sugerindo que isso se deva ao facto destes alimentos serem ricos em fibra e fitoestrogénios, ambos fatores protetores em relação a este cancro. Os autores também referem um estudo no qual se verifica que substituir uma dieta rica em gordura e proteína animal por uma dieta rica em gordura e proteína vegetal pode diminuir os níveis de estrogénio em circulação em mais de 40%.
E se é verdade que as recomendações para se evitarem as carnes processadas já não são assim tão novas, também é verdade que a relação entre o consumo de carnes vermelhas e a incidência de cancro é um velho assunto, como se pode ver numa notícia de 1907 no jornal New York Times: “O cancro aumenta entre os consumidores de carne. Por outro lado, italianos e chineses, praticamente vegetarianos, mostram a menor mortalidade de todos“.
New York Times, 1907
New York Times, 1907
cancro colorretal é um dos cancros mais comuns nos países desenvolvidos. EmPortugal é o cancro mais comum para ambos os sexos, pelo que conhecermos os seus fatores de risco é fundamental para podermos diminuir o risco de vir a ter a doença. De acordo com o que sabemos hoje, cerca de 50% de todos os casos de cancro colorretalpoderiam ser evitados caso:
  • Mantivéssemos um peso saudável;
  • Fizéssemos exercício físico;
  • Consumíssemos alimentos ricos em fibra;
  • Reduzíssemos o consumo de carnes vermelhas e evitássemos o consumo decarnes processadas;
  • Evitássemos bebidas alcoólicas.
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O impacto que tem a prevenção do cancro ultrapassa a dimensão pessoal, tendo mesmo efeitos sociais significativos ao reduzir potencialmente os grandes encargosque esta doença representa para o SNS. Em Portugal, esses encargos com a doença oncológica ascendiam em 2009 aos 565 milhões de euros em custos diretos e 2048 milhões se incluirmos os custos indiretos. A fatura para os SNS para toda a União Europeia dos encargos com cancro é de cerca de 126 mil milhões de euros. Se pensarmos que uma grande parte dos cancros mais comuns depende de fatores de risco que podemos controlar, podemos prever um grande alívio pessoal e coletivo ao tomarmos medidas fortes e objetivas para lidar com este problema.
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De facto, recentemente, foi publicado um relatório da Comissão Europeia que avalia a atenção dada pelos Programas Nacionais para as Doenças Oncológicas ao papel daalimentação na prevenção do cancro pelos Estados-Membros (Eisenwagen and Caldeira, 2014). O relatório lembra-nos que em tempos de crise e contenção financeira, uma eficaz implementação de medidas de prevenção de uma doença como o cancro, é uma estratégia promissora de redução no orçamento destinado ao tratamento do cancro e de outras doenças:
In times of financial crisis, inexpensive but far reaching diet-related interventions are promising cost-effective strategies to cut cancer and other healthcare-related budgets. The effect of successfully implementing such measures will likely extend beyond reducing cancer incidence as it is likely to affect other diseases and conditions from obesity to type II diabetes and cardiovascular disease.
De acordo com este relatório a grande maioria dos Programas Nacionais para a Doença Oncológica reconhece haver uma relação entre a dieta e a prevenção do cancro, apresenta medidas concretas de prevenção, embora estas não passem decampanhas de sensibilização. Medidas mais interventivas que vão para lá da simples passagem de informação são menos frequentes. Por exemplo, relativamente aoconsumo de carnes vermelhas e carnes processadas cuja recomendação passa por diminuir e evitar respetivamente, apenas a Estónia apresenta medidas concretas para diminuir o seu consumo.
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Dito isto, depois da OMS ter classificado recentemente as carnes processadas comocancerígenas para humanos, seria de se esperar que os responsáveis pelas políticas de saúde pública tomassem medidas mais objetivas para diminuir o consumo destes produtos, assumindo uma posição mais forte e do lado da saúde dos cidadãos. A clássica mensagem de comer com moderação pode ser insuficiente, por serdemasiado vaga e deixar espaço para interpretações muito subjetivas. As carnes processadas, das quais fazem parte produtos como as salsichas, o fiambre, os enchidos, o bacon e o chouriço, não deveriam fazer parte de uma dieta saudável numa base regular.
O facto de não existirem medidas robustas para conter o consumo de alimentospotencialmente prejudiciais para a saúde, deixa a população mais vulnerável a escolhas pouco saudáveis e a uma indústria capaz de encaixar mensagens e alegações de saúde associadas a produtos de risco.
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As recomendações hoje são claras para a prevenção do cancro colorretal e possivelmente outros: reduzir o consumo de carnes vermelhas (menos de 500 gr por semana) e evitar o consumo de carnes processadas. A recomendação de se evitar um alimento não é compatível com a ideia de moderação: evitar significa sempre que possível não consumir esses produtos, ao contrário de reduzir que significa comer com muita moderação, privilegiando e alternando com outros alimentos. Nem a ideia de moderação deverá escapar à sua própria mensagem: tudo com moderação, incluindo a moderação!
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E se é verdade que as implicações do consumo excessivo de carnes vermelhas e processadas são de ordem pessoal e social, é impossível deixarmos de mencionar o impacto que também representa para o ambiente. Hoje em dia, mais do que falarmos de dietas saudáveis, será cada vez mais atual falar em dietas sustentáveis, ou seja, aquelas dietas que representam o menor impacto para a saúde dos humanos e para a qualidade do ambiente.
Estima-se que a agropecuária seja responsável por cerca de 51% das emissões de gases com efeito de estufa, o que significa que é o setor de atividade que mais contribui para o aquecimento global. De todos os produtos alimentares produzidos, as carnes vermelhas, em particular a carne de vaca é a que mais representa impacto para o ambiente. De facto, 20 porções de vegetais representam menos emissões de gases com efeitos de estufa do que um bife de vaca (Tilman and Clark, 2014).
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Com o aumento do acesso a produtos de origem animal em todo o mundo, estima-se que até 2050, o aumento da emissão de gases com efeito de estufa aumente cerca de 80%. Por outro lado, caso se alterassem os hábitos alimentares em termos globais, poder-se-ia diminuir essa emissão em 30% com uma dieta mediterrânica, 45% com uma dieta que só incluísse peixe e 55% com um dieta vegetariana (Tilman and Clark, 2014).
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Embora o maior impacto para a saúde e para o planeta seja a produção e consumo de carne vermelha, o consumo de peixe excessivo também representa uma pegada ecológica considerável. Um relatório da Global Footprint Network muito recente dá-nos conta que Portugal é o país que utiliza mais área de terra na área do Mediterrâneo para produzir os alimentos que consome: cerca de 1,5 hectares de terra ou mar são necessários para alimentar cada português a cada dia. Este cenário deve-se a duas razões: come-se excessivamente (cerca de 40% mais do que as calorias recomendadas) e o facto de Portugal ser um dos países do mundo com maior consumo de peixe per capita, o que poderá ser bom para a saúde, mas continua a ser prejudicial para a Terra.
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Embora a dieta Mediterrânica seja saudável na prevenção de doenças como o cancro(Couto et al., 2011) ou doenças cardiovasculares (Couto et al., 2011), os seus benefícios devem-se ao facto de se tratar, originalmente, de uma dieta de base vegetal, com consumo muito moderado de produtos de origem animal. De facto, a maior parte dos estudos que temos disponíveis, mostram benefícios claros das dietas de base vegetal na prevenção de doenças:
EstudoNResultados
EPIC
2013 
4456132% menos risco de doença cardiovascular
AHS-2
2013 
96469Mortalidade: 12% inferior
Cardiovascular: 13% inferior
Doença renal: 52% inferior
Endócrinas: 39% inferior
EPIC-Oxford
2014 
61647Diminuição de todos os cancros:
Pesco: 12%
Lacto-ovo: 11%
Vegan: 19%
AHS-2
2013 
69120Diminuição de todos os cancros:
Pesco: 12%
Lacto-ovo: 7%
Vegan: 16%, 34% (cancros femininos)
AHS-2
2015 
96354Diminuição de cancro colorretal:
Todos: 22%
Pesco: 43%
Lacto-ovo: 18%
Vegan: 16%
De facto, as regiões do planeta onde se encontram as maiores taxas de centenários têm em comum entre si o facto de fazerem dietas de base vegetal, com poucos ou nenhuns produtos de origem animal, ricas em leguminosas, onde se faz exercício físicoe existem fortes comunidades e laços sociais. Uma das formas simples de descrevermos o que poderá ser um padrão alimentar saudável podemos encontrar na célebre fórmula do jornalista Michael Pollan: “comer comida, não demasiado, a maior parte plantas” (eat food, not so much, mostly plants).
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Existem por isso bons motivos para mudarmos os nossos hábitos alimentares na direção de dietas de base vegetal por serem aquelas que poderão ser verdadeiramente sustentáveis, para a saúde e para o planeta. Estas serão com certeza as dietas do futuro, pois este mesmo futuro dependerá de as conseguirmos adotar e de conseguirmos colocar em prática um velho provérbio oriental: comer metade, correr o dobro e rir o triplo.
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Referências:
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